Aproveitar o extraordinário ciclo hidrológico da Amazônia para gerar proteína de qualidade, com tecnologia avançada e liderança internacional: isso acaba de se tornar realidade. E o consumidor ganha acesso a produtos de alto apelo gastronômico – do pirarucu ao tambaqui – até hoje reservados a pequenos nichos, por restrições de escala, qualidade e preço.
A inovação começa pelo arranjo: na contramão da história dos empreendimentos amazônicos, não se trata de extrair algum recurso abundante e barato para lhe agregar valor em outra região do mundo ou fase posterior da cadeia. Ao contrário, a base é um investimento local em liderança tecnológica – desde a produção de larvas e alevinos até ração específica – e que promete atingir padrões inéditos de economia circular, com aproveitamento da limpeza contínua das fezes dos peixes para gerar algas e nutrientes que voltam a alimentar o ciclo.
O parque industrial já instalado para esse fim no Acre (entre os mais avançados no mundo) atinge neste primeiro ano a produção de 3 mil toneladas, com previsão de 20 mil até 2017. A novidade abrange também o modelo do investimento no empreendimento, batizado de Peixes da Amazônia, uma pioneira mistura de empresariado local, fundo de investimento privado, investimento público (alavancado pelo governo acreano, mas até com presença do paraense) e participação cooperativa de parte dos produtores, que não ficam relegados ao convencional e vulnerável papel de fornecedor primário. Elemento-chave para a sustentabilidade.
Os números chocam quem acostumou a olhar para o pequeno produtor da Amazônia como alguém condenado a rendimentos irrisórios de pastagens extensivas e improdutivas, e ainda como devastador do meio ambiente. Meros 5 hectares de mini-reservatório – passível de ser gerenciado por uma família – geram renda bruta entre 125 e 250 mil reais/ano. Metade disso é renda líquida. E a produção de 20 mil toneladas/ano pode ser realizada em um total de apenas 2.500 hectares de açudes, área equivalente a uma fazenda média no padrão da região.
Como cozinheiros, costumamos lamentar a falta de produtos oriundos da nossa biodiversidade, que nos abasteçam com segurança, continuidade e qualidade. Neste caso, pelo menos, os desafios são nossos.
Primeiro, mostrar ao brasileiro que usar peixe de aquicultura – do sushi à churrasqueira – não significa se render a salmões ou tilápias de baixa qualidade, ao mesmo tempo em que gosto e diversidade à mesa não são prerrogativas de poucos privilegiados. Segundo, surpreender o mundo com produtos de qualidade que contribuem para acabar com o desmatamento: o que implica construir e compartilhar maneiras de usá-los com criatividade e inovação.
Por Roberto Smeraldi para o jornal “O Estado de São Paulo”, caderno Paladar